O que é suficiente?

escrito por RAPHAEL PAZOS

Meu avô adorava relógios. 

Pouco antes dele morrer, eu estava pesquisando sobre ternos porque decidi me vestir melhor. Um assunto puxa o outro e eu comecei a desenvolver uma admiração por relógios.

Após a morte dele, me vi fissurado no assunto. Pesquisando tudo sobre os diferentes tipos de relógios, mecanismos e história das marcas.

Comprei alguns e tentei me justificar com razões econômicas ou estéticas. O gosto foi aumentando…

Já gastei milhares de reais com relógios e me vi gastando muito dinheiro, atenção e tempo com o assunto. Muito mais do que o que eu gostaria.

Eu acabei lendo histórias de pessoas que gastaram fortunas com esse hobby. Algumas pessoas que passaram por dificuldades reais por isso. 

Foi como se eu tivesse me visto de cima de um poço, olhando para baixo. E o poço me olhou de volta.

Alguns dos meus relógios estão à venda porque hoje sei quantos são o suficiente para mim. Aprendi o motivo do assunto ser importante pra mim, porque penso nisso com carinho, porque é algo que quero ter comigo, e o que é suficiente para que isso seja manifestado e representado em mim.

Saber o suficiente ajudou a me manter apenas no topo do poço. 

Mas o que é suficiente? O que é "O" suficiente?

Definição

A origem da palavra suficiente é latina. E tem ligação com o termo satis que é a origem direta da palavra satisfazer. 

Aquilo que satisfaz, aquilo que é suficiente é o que é bastante. Bastante é o que basta. 

Se suficiente é aquilo que satisfaz, o que não é suficiente não satisfaz. É insuficiente.

Normalmente a insuficiência está ligada a menos do que o suficiente.

Mas o que acontece com o que vem depois do suficiente? Se um balde tem água suficiente, o que acontece quando colocamos mais água no balde? Se uma pessoa toma remédio suficiente, o que acontece quando ela toma mais remédios?

Se antes do que é suficiente normalmente é ruim, depois do que é suficiente, no meu entendimento, deve ser considerado ruim também.

Problema

O suficiente parece ser uma quantidade importante de qualquer coisa que temos ou fazemos, já que se encontra entre a insuficiência e a supra suficiência, que são por definição e no meu entendimento ruins.

Porém, a depender do que consideramos medir, podem haver diversos níveis de suficiência.

Por exemplo, temos dois olhos. Qual a quantidade suficiente de olhos para uma pessoa? Ora, nenhum. Ou dois. Depende do objetivo. Para viver, zero olhos são suficientes. Temos pessoas sem visão que são funcionalmente úteis na nossa sociedade. Já para caçar, a depender de como é a caça, dois olhos são o mínimo porque a visão com dois olhos forma no nosso cérebro a imagem com ideia de profundidade. Zero neste caso é uma quantidade insuficiente de olhos.

Tudo isso para dizer que o suficiente, no meu entendimento, deveria ser um assunto muito presente nos nossos pensamentos cotidianos. Não de uma forma genérica sobre o que é suficiente para “o ser humano”, e sim sobre o que é suficiente para cada indivíduo e como podemos descobrir isso. E raramente discutimos isso...

 

Veja a foto abaixo: 

Essa foto não é uma montagem. Essa é uma casa de uma pessoa com compulsão por livros. Na verdade este é o banheiro, identificável pela banheira, pelos azulejos e pelo tipo de janela. Livros cobrem todo o restante do espaço.

Acima está o título de um dos artigos de Dawn Klinge onde ele defende porque a bíblia cristã é o único livro que precisamos. Em outras palavras, a bíblia cristã seria suficiente.

Quantos livros são suficientes para “o ser humano”? 

Cada ser humano é único. Essa é uma pergunta difícil e abstrata.

Eu conheço pessoas que vivem bem sem ter lido um único livro. Já eu espero não ter lido meu último.

Mas como saber quantos são suficientes? Será que essa quantidade existe de fato? Será que ela é fixa? 

Como saber o ponto a partir do qual, mais, fará mal?

E aqui eu não quero defender uma quantidade de coisas que sejam suficientes. Mas quero sim defender que a conversa sobre a quantidade suficiente de algo deve existir.

 

Suficiente é pouco

Recentemente tive uma dessas conversas sobre o suficiente que não foi frutífera porque meu interlocutor disse não gostar “desse tipo de conversa”. Disse que o suficiente traz uma ideia de “escassez” e “passividade”.

Eu não entendo assim. Por dois motivos:

-Somos seres em constante mudança, em ambientes que mudam constantemente. O que foi suficiente ontem pode ser insuficiente amanhã, e pode ser supra suficiente semana que vem. Logo, a quantidade de algo tida como suficiente pode ser revista com a constância necessária à mudança de demanda individual e de ambiente de cada pessoa.

-O insuficiente é ruim. O supra suficiente é ruim. Quando algo não satisfaz uma condição, devemos buscar mais para que a condição seja satisfeita. Na mesma medida (na minha opinião) quando algo mais que satisfaz uma condição, devemos refrear a quantidade daquilo para que a condição seja apenas satisfeita.

Um frase que eu ouvi do Joel Jota e que gosto muito é "Sem pressa, sem pausa". Uma adaptação dessa frase é "Sempre contente, nunca satisfeito". Sempre podemos fazer melhorias nas nossas vidas. Sempre. Mas por que achar que estar contente com sua vida é um sinal de passividade ou "mente escassa"?

Entendimento

O consumo é um assunto delicado. 

Cada um pensa um modelo de consumo para si que acha certo e busca as devidas proporções e justificativas para tal.

Mas perspectivas diferentes podem nos trazer entendimentos diferentes. A perspectiva que eu possuo sobre o que é suficiente pode ser diferente da sua e por isso penso que conversar sobre o assunto é importante.

Porém, a conversa mais importante é a interna.

Voltando aos relógios, quando li a história de uma pessoa com seus 50 anos, que morava no porão da casa dos pais, e não tinha nada na vida a não ser dois relógios de luxo, tive uma visão privilegiada de como é o fundo do poço. 

E talvez o poço possa ser ainda mais fundo.

Saber dessa história me permitiu uma conversa interna com mais nuance e com mais embasamento sobre qual o futuro do meu consumo. 

Essa nova perspectiva, essa conversa, me permitiu definir, pelo menos quanto a essa coisa trivial e fútil como consumo de relógios, o que era suficiente.

E só acredito ser possível desenvolver um entendimento mais sensível sobre o que é suficiente, quando conversamos (internamente ou externamente) e colocamos nossas certezas ou convicções à prova.

Se você colocar seu endereço de e-mail aqui embaixo, eu aviso sempre que publicar um novo artigo